O crítico de cinema Roger Ebert definiu o filme “The
Doors” como uma comemoração infernal. Ao mesmo tempo em que reconheceu as qualidades
técnicas da obra, incomodou-se bastante pela autodestruição retratada. Seu
parceiro no programa televisivo “Siskel & Ebert”, Gene Siskel, também foi
afetado pela atmosfera do filme, mas o defendeu em sua composição de uma época
de descobertas, excessos e destruição simbolizada pela figura de Jim Morrisson.
Mais de uma década após esta discussão e o lançamento, pode-se afirmar que o
longa-metragem dirigido por Oliver Stone mantém intacto o clima carregado
aliado a imagens fortes e hipnotizantes.
Revi um filme em uma sessão no Cine Joia, localizado
em Copacabana. Assisti-lo em uma tela grande potencializa o impacto da obra. Apesar
de possuir uma escala menor do que as produções épicas que Oliver Stone realizava
no período, “The Doors” não é menos ambicioso. Alterna técnicas diversas de
iluminação, enquadramento, movimentação e edição para criar um ambiente caótico
de sonho/ pesadelo. O que incomodou tanto a Ebert e me fascinou é a mão pesada que segura
e não larga o espectador. “The Doors” almeja uma camada sensorial e chega perto
de seu objetivo. São imagens fortes e belas, carregadas de significado. O tema
da morte é presente em quase todas.
O Morrisson cinematográfico, mais do que um artista
autodestrutivo, é um profeta apocalíptico, que promete a revelação em troca de
sua alma. Embora seja o subtexto do filme e do personagem, há sequências que explicitam
o tópico. A música pode ser um portal para o outro mundo, como a morte física. Se
há algo que irrita as pessoas é ser lembrado de sua mortalidade.
Torna-se óbvio que não se trata de uma obra realista
em qualquer momento, mesmo sendo baseada em história. Os fatos servem à arte, e
são reconstruídos para se adequar à interpretação de Stone do que a música do
grupo e a performance do vocalista significavam. Enquanto a construção cênica é
de uma psicodelia hiper-realista, Stone optou por um roteiro e direção de atores
realista.
A escalação é feita com atores competentes e que se
assemelham às personalidades reais e a trama segue uma ordem cronológica. Se
por um lado é uma opção que evita que o filme alcance o estado sensorial que
ambiciona, também permite uma aceitação de um público mais tradicional e abre
caminho para destacar o protagonista em meio à “normalidade” da trama e das
atuações.
O desempenho de Val Kilmer, chamado de “espírita”
por alguns, é a ponte entre a encenação surreal e o palco da realidade. Ao
optar por uma incorporação no lugar de uma interpretação, Kilmer atinge o raro
equilíbrio entre atuar e “ser” o personagem. É uma decisão que poderia dar
errado, e desviar para uma caricatura ou um esforço fútil. O ator consegue
atingir uma fusão entre si e o personagem, fato que se torna mais admirável por
se tratar de alguém que existiu e que foi registrado em gravações. Assim, é
possível aceitar “The Doors” como um estudo sobre o mundo reconstruído através
da arte, alterando padrões sociais e comportamentais através de uma ação agressiva
e sugestiva do artista.
Morrisson foi comparado a seu ídolo, Arthur Rimbaud,
que também viveu uma juventude intensa e forte em criação. “The Doors” não é
uma temporada no inferno, mas uma festa, com começo e hora para terminar. É um
filme que resistiu bem como um retrato pessoal de um momento histórico, um
musical ousado e uma crônica filosófica sobre um homem que possuía grandeza,
mas encontra a ruína pela dor que o consome por dentro. Ruína esta que lhe concede imortalidade. A arte é uma musa faminta.
*Anedota sobre a sessão em si: Ouvi risos em uma cena de luta entre o protagonista e um policial. O ator, que ganha um close apesar da participação pequena, é um jovem Titus Welliver, mais conhecido como "Homem de Preto" do seriado "Lost". Assim que ouvi estas palavras, pensei "Que viagem!" Bom, se há um filme para "viajar", este é um candidato.
Muito boa análise, pena que não pude ir à sessão. O cartaz feito pelo Johandson tbm! E anedota final, à guisa de conclusão, foi ótima!
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