sábado, 5 de novembro de 2011

Crime e pães



Texto escrito para o evento "Clube da Leitura" no sebo Baratos da Ribeiro, em Copacabana. Visite o blog do "Clube da Leitura". É só clicar no nome.

Era uma fria, fria noite de outubro e o operário de fábrica Fyodor Kapek voltava para casa exausto. Havia esperado por mais de uma hora na fila para conseguir dois pães mofados e duas batatas. A rua Arbat estava sem luz devido a outra queda de energia e a neve castigava seus calcanhares e rosto.O ano era 1983 e o local, Moscou, a capital da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A vida não estava sendo fácil para a outrora próspera potência mundial. Problemas sérios de infra-estrutura, desde a produção de alimentos ao declínio da indústria estatal, combinados com a crescente rebelião de grupos insurgentes, levavam o país ao colapso.
Não que Fyodor se importasse com isso. Tudo o que ele queria era publicar seus diários e se tornar um escritor famoso. Queria honrar a memória de seu pai, Nikita, que carregava consigo o livro de sua vida. Por alguma razão, o conteúdo da obra de seu progenitor estava em branco, mas Fyodor não via isso como sinal de fracasso, mas sim de uma abjeção completa pela arte. Seu pai nunca poderia ser um autor de uma história perfeita quando sua vida estava longe disso. Embora o filho não fosse tão radical, reconhecia que a rotina tinha seu próprios meios para sugar a vontade criativa.
No caso de Fyodor, isso se manifestava na forma de sua esposa, Whadia Ingratovich. Eles se casaram por amor, mas ficaram juntos para manter o apartamento luxuoso de duas salas médias e um quarto pequeno. Todas as noites, ele abria a garrafa de vodka com estramônio e permanecia horas em cima de seu caderno. Pela manhã, via o resultado de seus esforços em desenhos de genitálias e numa caricatura de Whadia morta em diversas maneiras. Ainda assim, mantinha a esperança de um dia escrever alguma coisa.
Nesta noite, a vida de Fyodor tomaria um novo rumo.
Após chegar em casa, cumprimentou a esposa. Whadia assistia a um show de variedades na televisão, "Revolucionário dia de trabalho do camarada Fausto", e respondeu mostrando o dedo do meio. Fyodor exibiu, triunfante, as compras.
- Só isso?
- Minha cerejeira, o rublo tá pela hora da morte! Do jeito que essa economia anda, só com uma reconstrução!
- Você sabe o que o Anatoli Nosecu traz para a casa, para aquela "dama do cachorrinho" que é a mulher dele? Quatro pães novos, incluindo um brioche, que nem existe ainda neste sistema planificado e nacionalista.
- Mas ele é um burocrata!
- Eu quero um brioche até amanhã ou a coisa vai ficar realmente vermelha pra você, camarada.
Pensou, mas não encontrou alternativas. Seu tio ganhava um bom dinheiro se prostituindo vestido de mulher, o que gerou o apelido jocoso "Tio Vanya". Será que seria este o seu fim, levar mais ainda atrás da cortina de ferro? Imaginou a si mesmo fantasiado de Anna Karenina quando lembrou do ponto dos travestis, a praça com o monumento a Boris Grushenko. Sabia que Anatoli passava por lá na volta do trabalho. Era um ponto deserto e as bonecas russas não poderiam dizer nada... Foi quando a virtude sumiu da alma de Fyodor. Ainda refletia sobre a moralidade do assassinato quando percebeu que apertava com força o pescoço de alguém.
O corpo caiu rápido na neve. Fyodor tinha acabado de tirar uma vida humana com suas mãos. Sua culpa exalava de seu interior e o sofrimento daquele ser viria a ser acumulado em si mesmo. Notou os belos pensamentos e concluiu: "Por Lênin, eu preciso escrever isso antes que me esqueça." Foi na busca desesperada por uma caneta que terminou preso. Sua mania de falar enquanto escrevia causou sua queda. Em particular, o trecho: "Acabei de matar Anatoli por um símbolo da cultura capitalista em formato de massa."
Condenado por homicídio e pelo brioche, esperava a data de sua execução em um frenesi literário. Ninguém o visitou, mas Fyodor não se importava. Finalmente, era senhor de seu destino. A morte daquele homem o desprendeu de seus pudores, libertando sua veia criativa. Escreveu suas memórias do subsolo, duas narrativas fantásticas sobre um jogador e o idiota, humilhados e ofendidos em noites brancas que encontram seus respectivos crime e castigo através de três irmãos e seu crocodilo.
Era o dia de seu fuzilamento. Apenas uma frase o separava do fim de sua obra. Aí, olhou para um estranho em sua cela. Surpreso, perguntou quem era. O visitante respondeu que era o diabo. Fyodor se assustou, mas o demônio o tranquilizou, informando que sempre gostava de conhecer novos inquilinos antes de mudarem para seu espaço. Como cortesia pela preferência, concedeu um desejo a Fyodor. "Quero a frase ideal para terminar este livro!" O diabo aceitou e disse que, no momento certo, antes de morrer, a frase perfeita, aquela com que seu pai sonhara para iniciar seu livro, surgiria. Antes de o diabo partir, perguntou como era o inferno. "É como estar de volta a União Soviética. E leve um saco de vômito que a viagem é horrível" e sumiu numa nuvem de enxofre.
Fyodor estava encostado no muro. Em suas mãos, uma caneta e um papel, seu último pedido. O pelotão estava posicionado. O comandante contava os segundos. A frase não surgia. "Vamos lá!", pedia o condenado. "Preparar", ordenou o militar. "Cadê a frase?", se desesperava Fyodor. Quando veio a ordem para "apontar", finalmente, a recompensa apareceu em sua mente: "Se o cara nasce mané, cresce mané, morre mané, mané!"
"Dá pra esperar só um minutin..."
"Fogo!"
Fyodor morreu instantaneamente, sem tempo de ver sua obra incompleta ser aproveitada como comida para porcos.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Um conto chinês




Um conto chinês (Un cuento chino, 2011) é um caso que ilustra perfeitamente o quão incômodo pode ser o chamado meio-termo. Não tem nada de errado nesta simpática produção, exceto o fato de ser plenamente descartável. O espectador desejoso por uma distração de 90 minutos sairá satisfeito. No entanto, resta a sensação de que o potencial dessa história poderia ser maior se os realizadores tivessem mais ousadia. Alguns elementos, como o cuidado da produção de arte e a escalação do ator principal, intensificam um defeito cuja origem não está em seu resultado final, mas no que ele suscita a partir da utilização desses elementos.
A história de Um conto chinês é simples e direta. Um dono de uma loja de ferragens ranzinza e solitário, Roberto (Ricardo Darín), tem sua rotina balançada com o surgimento de dois visitantes. O primeiro, Jun (Ignacio Huang), um chinês perdido e sem conhecimento de espanhol que, por uma série de circunstâncias, é abrigado por Roberto. A segunda é uma paixão antiga, Mari (Muriel Santa Ana). Estes dois terão um papel importante em fazer com que o protagonista se abra para o mundo, a vida e o amor.
O fato de ter Ricardo Darín, um dos atores argentinos mais talentosos e reconhecidos internacionalmente, como protagonista, enfatiza uma antecipação por algo a mais que não surge. Darín está bem no papel e parece se divertir interpretando o rabugento Roberto. Fora esta "alegria de performance", não há nada no texto que distancie o personagem de um arquetípico Scrooge. Para usar um metáfora futebolística, a presença de Ricardo Darín é neste filme como Ronaldinho Gaúcho jogando em um time de pequena categoria e muita pompa. Evidente que ele fará um bom serviço, mas a percepção de desperdício é tremenda.
Os outros atores fazem um bom trabalho. Huang alterna entre o desespero e o servil enquanto Santa Ana é encantadora, cumprindo cada um, a sua maneira, a tarefa designada: atormentar o acomodado protagonista. No caso, um simboliza o elemento estranho, aquele fator inesperado que pode mudar sua existência como a tal vaca que cai do céu. Ele aponta para a impossibilidade de permanecer parado no tempo, com sua urgência e, principalmente, a barreira de comunicação. Ela é a esperança, a recompensa que pode o estar aguardando se for esperto o bastante para entender o significado do chinês. E, como elemento que serve como sinal de movimentação, a vaca holandesa.
Um conto chinês não é um filme ruim ou um desperdício de tempo. É um desperdício de talento e potencial narrativo. É uma história que foi contada sem arroubos de novidade, mas que, para seu crédito, é feita de forma competente. No entanto, às vezes, ser satisfatório não basta. É preciso ousadia para criar algo novo e não ser como um velho acomodado e repisa constantemente as mesmas manias. É a lição que Um conto chinês deveria ter aprendido com seu protagonista.

Escrito para o site "Almanaque Virtual" em 08/09/11

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Qual é o livro que mais lhe marcou? Antônio Xerxenesky



Esta é uma série em que faço uma pergunta a escritores e outros personagens da trama editorial. Se ainda não percebeu qual é, então, o que você quer que eu faça?

Na edição de hoje, o autor Antônio Xerxenesky. A entrevista foi feita em áudio e a transcrição preservou ao máximo a instantaneidade da fala.

Acho que foi "O arco íris da gravidade" do Thomas Pynchon, porque, a primeira vez que eu o li, eu não entendi quase nada. E eu tou relendo ele. Eu releio ele com uma frequência e continuo nunca entendendo tudo e acho que vou continuar relendo e nunca vou entender todas as mil coisas que tem ali, porque é meio um livro maior que o mundo. Marcou muito por isso, porque esse é um livro que tenta abranger todo o universo e fracassa. E meio que nada nesse fracasso.

DRR: O que fracassa nele?

Fracassa, porque qualquer livro com essa pretensão de totalidade, que, no caso, tenta dar conta da Segunda Guerra; enfim, do fim da Segunda Guerra Mundial; e ele tenta com mil linguagens diferentes. Tem linguagem de desenho animado, linguagem pastelão, tem linguagem científica, tem fórmulas matemáticas no meio. Ele tenta pegar o mundo de todos os pontos de vista diferentes para tentar atribuir algum sentido, mesmo sabendo que vai ser impossível, que, ainda assim, ele continua absurdo. Quanto mais investiga, mais absurdo aparece.

O Autor:



Antônio Xerxenesky nasceu em 1984. É escritor e co-fundador da Não Editora. Publicou a convenientemente esgotada coletânea de contos "Entre", a novela "Areia nos dentes" (Não Editora/ Rocco) e a uma nova reunião de pequenas histórias, "A página assombrada por fantasmas" (Rocco). Também pode ser lido nas antologias "Ficção de Polpa Vol. 1", "Ficção de Polpa Vol. 2", "Ficção de Polpa Vol. 3" e "24 letras por segundos", todos pela Não Editora. É um dos editores da revista virtual "Cadernos de não-ficção".

Links:
Em O Arco-íris da Gravidade, Thomas Pynchon compõe uma ousada "narrativa enciclopédica", com 400 personagens e tramas paralelas

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Valeu, Vicente: um relato pessoal do evento "Homenagem ao querido Vicente"


Ontem eu fui ao Empório.
Para aqueles que eventualmente desconheçam a Zona Sul carioca, trata-se de um bar em Ipanema. Reduto notório de jovens, turistas e criaturas da noite, é conhecido pelo som (rock n'roll) e como porto seguro para os boêmios de plantão (eu). Entre as diversas figuras que estiveram ou ainda surgem por lá, uma resumia em si toda a essência do local. Vicente. Por 22 anos, ele trabalhou como garçom do Empório e se tornou um "embaixador" do lugar. Ele era o Empório em qualidades e defeitos (Quem nunca recebeu seus "avisos" de que não pode entrar com lata de cerveja no estabelecimento ou que é proibido fumar dentro do bar?). Ele morreu na terça-feira, dia 09 de agosto de 2011. Dois dias depois, foi organizada uma homenagem a ele na sua "casa".
Uma amiga, Tábata, teve a ideia e a colocou na rede social. O que, nas palavras dela, seria um encontro entre poucos amigos se transformou numa convocação informal. Chegou a ponto de ela dar uma entrevista para "O Globo" e de receber reclamações de moradores, temendo a movimentação prometida. Deviam ter pensando ser uma espécie de versão carioca para as manifestações londrinas e chilenas, especulo. Pouco mais de 2.500 pessoas confirmaram presença. Duvido que vieram todos. Mas estava bem cheio. Dentro e fora do Empório e estendendo até o bar na outra ponta do quarteirão, o que tinha era gente vinda para a "Homenagem ao querido Vicente". Estacionados na esquina próxima ao bar, a Guarda Municipal tomou posição para acertar a passagem dos carros na rua lotada por pessoas que iam e vinham, cerveja numa mão e cigarro na outra.



Para uma ocasião marcada por uma égide trágica, foi bem descontraído. Lembrava o Empório como ficou marcado em nós: cheio, boa música e amigos aparecendo a cada instante. Era mais o Empório que gostamos de recordar do que aquele que realmente foi. Comentando com Tábata hoje, concordamos que Vicente teria aprovado. Até os reconhecidos pontos negativos estiveram presentes, como a quase total incapacidade de se mover dentro do lugar, a fila do banheiro e o preço do chopp. No entanto, me dando ao direito de ser piegas, senti falta do famoso grito de "Olha o chope!" sempre que Vicente saia do balcão para servir uma mesa. Foi aí que me bateu a certeza de que, como mencionou Bob Dylan numa canção, "Things have changed".
Conversando com alguns dos vários conhecidos em que esbarrei nesta noite, chegamos a conclusão de que o Empório tem duas fases na sua vida: aquela em que as pessoas vão para o Empório e a posterior, em que você aparece no lugar. Explico: a primeira é quando a ida ao estabelecimento é programada. Você combina com os amigos de se encontrar no Empório e a noite gira a partir daí. A segunda é quando, após os bares de rua fecharem, a busca por alternativas de lugares abertos termina por levar ao Empório. Quando você chega a esta fase, é porque não é mais adolescente. Quando começamos a ir ao bar, estávamos entrando na faculdade e não tínhamos maior preocupação do que o CR. Agora voltamos como seres lutando por um quinhão no latifúndio conhecido como mercado de trabalho, com contas e responsabilidades a galope. Definitivamente, não sou o garoto de 20 anos de 2003, ano que marca minha associação com o lugar.
Apesar de, nos últimos anos, somente aparecer de forma ocasional, ainda gosto de lá. Entre porres, tocos e infinitas saideiras, o Empório me parecia um porto seguro justamente por sua atmosfera familiar. E atribuo a isso à presença do Vicente. Até no visual, ele parecia ser o único de nós não afetado pelo tempo. Mantinha a mesma barba generosa e atitude. Gostava de programas culturais e música rock. Sei do primeiro por relatos e experiência. Toda vez que o via, conversávamos sobre filmes, ainda mais depois que me tornei crítico de cinema. Em seguida, pegava com ele um chopp e ia fumar no lado de fora. Quanto ao segundo, há uma gravação no Youtube de um show do Gogol Bordello, em que Eugene Hütz faz um cover de "I wanna be your dog" do Iggy Pop. A participação de Vicente é pequena, porém emblemática.
Como ícone de um passado recente, o falecimento de Vicente deixa uma sensação amarga. Se não para o mundo, sua morte, para mim, separa de forma explícita quem eu fui e o que sou agora. As coisas mudaram. Faço, então, minha despedida usual, quando deixava o copo vazio no balcão e encerrava o dia.
"Valeu, Vicente."

Links:
Eugene Hütz canta "I wanna be your dog"

Morre Vicente, garçom-ícone da cena alternativa carioca, e frequentadores programam homenagem

Foto do evento "Homenagem ao querido Vicente" tirada por... mim.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Clube da Leitura: Peito


Texto escrito para o evento "Clube da Leitura" no sebo Baratos da Ribeiro, em Copacabana (19/07/11). Visite o blog do "Clube da Leitura". É só clicar no nome.

Tentava pensar em uma ideia para o desafio do dia seguinte: escrever um conto inspirado em uma crônica lida há duas semanas. O mote era uma relato breve em que um acadêmico paulistano comparava o movimento politicamente correto com a transformação do protagonista de “A metamorfose” em um inseto. No caso, como a opção por aceitar passivamente as circunstâncias e nada fazer a respeito pode ser visto por algumas pessoas como uma espécie de felicidade. Ou seja, ignorar o estranho e escolher uma adaptação hipócrita seria a melhor maneira de adequação à sociedade.

Estava num ônibus. Voltava para casa após um longo dia de trabalho. Queria tomar um banho quente e fechar a segunda-feira. A linha era o 308, anteriormente conhecido como 175. Por que mudaram o número, eu não sei, pois o trajeto continuava o mesmo. O que também permanecia era o característico fedor de cecê impregnado pelo veículo como uma lembrança de como as pessoas preferem se manter quietas perante o absurdo a assumir uma postura controvertida e solitária. Puxa, que cheiro terrível; não podia ser o único incomodado.

Entre o cansaço e o odor, nada me vinha à mente. Nada, além das preocupações habituais com desemprego, contas atrasadas e indecisão geral quanto à vida. Então, elas entraram.

Duas garotas, provavelmente retornando ao lar após um dia de trabalho. Poderiam ser estagiárias de uma firma na Barra, quem sabe? Sabia que eram de estatura mediana e muito magras. Jovens, sem dúvidas. Bonitas, num jeito peculiar, também. Achava graça em notar como suas cabeças pareciam grandes demais para aqueles corpos miúdos. Ainda assim, seus rostos cansados e oleosos mostravam uma beleza tímida e nova, típica da garota que lhe conquista com um sorriso e um jeito agradável de ser. Foi aí que percebi outra coisa.
Como todo homem solteiro, olhar de forma discreta não é um crime. Eu olho, tu olhas, ele/ela olha, nós olhamos, eles olham (ninguém mais usa a segunda pessoa do plural “vós”). E o que olhei era que uma delas não tinha bunda. Era realmente sem curvas o trecho de trás da calça abaixo da cintura. Levantei meus olhos e notei que seu decote tampouco era generoso e o de sua amiga também. Ambos eram desprovidos de quaisquer contornos entre o plexo e o pescoço. Logo, não era um vestígio rotineiro de luxúria que conduzia meus pensamentos, mas como as mulheres que haviam feito parte de minha vida se relacionavam com seus corpos.

Independentemente do tipo de relação, todas sempre mencionam um defeito que enxergavam como aberrante. Em geral, esses “erros de nascimento” se concentravam nas partes extremas dos terços que dividem o corpo: pés, bunda e seios. Uma mencionava que tinha o segundo dedo pé muito comprido em relação aos outros e outras que calçavam tamanhos que seriam mais apropriados para um homem. Quanto à parte traseira, surpreendentemente só conseguia me lembrar de uma única queixa: não ter parte traseira substancial. Se o adjetivo deveria ser entendido como algo que mostrasse curvas ou “bumbum de passista”, me falha o entendimento.

Já os seios eram a área mais crítica. As reclamações variavam: muito pequenos, muito grandes, tamanhos desiguais, caídos, … Elas estavam convencidas de que um homem não poderia deixar de olhar para esses defeitos de maneira imediata. Talvez seja minha ingenuidade, mas realmente nunca prestei atenção em nada disso até elas me chamarem a atenção. E, mesmo assim, eu não dava a mínima. Uma ex-namorada perguntava se deveria fazer uma operação plástica. Quando me lembro, acredito que ela esperava que reafirmasse suas suspeitas e abençoasse o sagrado bisturi. Seu olhar questionava minha sinceridade. Assim, repetia a pergunta mais de vez, me encarando na esperança de notar qualquer alteração. Tudo o que queria dizer era que não me apaixonei por uma parte de seu corpo. Quem gosta de pedaços de carne é açougueiro. Desejava que vissem que achar uma pessoa linda não se tratava de imagens, mas de uma experiência sensorial. É preciso tocar algo além da pele.

Embora divague, o ponto que gostaria que ficasse claro é: Homens não se importam tanto como uma mulher aparenta se estão envolvidos emocionalmente. Parece mentira, mas não é. Toda conversa que tenho a respeito de mulheres, após passarmos do cumprimento “é gostosa”, falamos sobre fatores alheios ao visual, como: ela é legal? o que fazem juntos? ela gosta disso, não gosta daquilo? Pelo menos, é assim nos papos em que participei. Há possibilidade de estar sendo ingênuo, mas se elas percebessem que estar com alguém em que podemos nos sentir à vontade, nos sentir com alguém que nos compreende, é o que os homens querem, haveria menos neurose sobre um aspecto que considero trivial. Se homens começam perseguindo a carne, eles ficam pela segurança. Logo, é mais importante ter peito que ser peituda.

Posso soar hipócrita defendendo uma questão mais espiritual que física quando foi justamente a última que me levou a estas reflexões e lembranças. Mas o fato é que isso seria o melhor que conseguiria. Como abordar alguém que você não conhece num ônibus? Não é como num pátio de escola na primeira série quando éramos crianças e tudo surgia sem uma névoa de segundas intenções e desconfianças mútuas. Se pudesse ter uma chance num terreno neutro, como uma celebração, poderia introduzir um assunto. Enquanto isso não ocorre, queria que soubessem o quão bonitas são e que nada ou ninguém poderia tirar isso delas, exceto elas mesmas.

Afinal, o que os homens querem não é um buraco, nem uma paixão alucinada. Tudo isso é bom, não entenda errado. Mas, ao final das contas, o que todos querem é encostar a cabeça no ombro de uma pessoa querida após um dia cansativa e ouvir aquilo que nos mantém seguindo em frente: “Meu amor, eu acredito em você.” Pois estas palavras provam que ainda teremos fôlego para lutar contra a passividade que nos transforma em insetos, seres indiferentes sem motivação para valer sua identidade. O que nos evita de sermos baratas felizes e morrer é o fato de que há alguém ao seu lado e para manter essa pessoa, você precisa ter peito.

Obs: A imagem foi colhida por Ágata Sousa no site PostSecret.

sábado, 30 de julho de 2011

Um debate brasileiro


Você vai se lembrar de mim na semana que vem?

Este texto não pretende discutir os méritos ou a ausência dos mesmos no longa-metragem "A serbian film - terror sem limites". Tampouco é minha intenção questionar se a controvérsia envolvendo sua exibição em território brasileiro seria um caso de censura. Há textos muito bons tratando desses temas e aconselho a leitura. Abaixo, o leitor poderá encontrar os links daqueles que achei mais intrigantes até esta tarde de sábado.
O que me interessa aqui é um elemento indireto na discussão toda. A necessidade de discutir os direitos e deveres da democracia de forma constante. Por que apenas quando um caso desses surge relembramos de nossos direitos? É como se a democracia fosse o ar que respiramos: algo presente, mas que ninguém pensa a respeito. No entanto, quando ficamos sufocados, a necessidade por fôlego retorna. A democracia para alguns parece adquirir uma conotação similar. Só invocamos seu santo nome quando sentimos sua falta. Não discutimos com constância o sistema de governo que foi inexistente por duas décadas e objeto de uma votação nos anos 90 em nosso país. Queremos nossos direitos, mas quase nunca nos damos conta de nossos deveres.
Antes da polêmica da semana passada, um jornal de renome foi proibido de publicar reportagens sobre uma investigação envolvendo um determinado político. Isso foi em 2009. Se me lembro corretamente, houve protestos de diversos membros da fatia intelectual/cultural do país. O site da publicação, inclusive, expunha um banner que servia de faixa de luto com o dizeres "X dias de censura". No momento, me falha a memória que desfecho teve essa história, se é houve algum.
Fatos como esses ocorrem com frequência em nossa nação. O fato é que quando uma proibição é sustentada pela Justiça, essa cumpre um direito de todo cidadão, seja ele um indivíduo ou grupo: aquele que se sentir ofendido por uma insinuação ou campanha pode levar sua queixa ao tribunal e ter seu pedido julgado. Se for procedente, será atendido. Outros julgamentos serão feitos para determinar a validade da decisão. Esse é um princípio e direito democrático. E, nosso dever como cidadãos, aqueles que elegem os funcionários públicos que determinarão os juízes responsáveis por este tipo de decisão acima, é aceitar o verídico caso não caiba mais recurso. Vamos nos lembrar sempre que nós somos parte da corrente dentro deste organismo. Protestos são benvindos e necessários. Entretanto, de pouco adiantam se não nos damos ao trabalho de supervisionar o trabalho de quem votamos até que algo que nos desagrade aconteça.
Temos o direito de nos queixar e exigir na Justiça o que acreditamos ser correto. Por outro lado, um pedido vindo de um partido político e seu cacique é julgado com os mesmos critérios disponibilizados a um indivíduo anônimo? Por mais absurdo que um argumento possa soar, ele merece ser ouvido? São perguntas importantes e negligenciadas. A meu ver, se for justo, deve ser acatado. Caso contrário, combatido. Os tribunais tomam estas decisões. No entanto, sem querer entrar nas particularidades presentes na formulações das sentenças, podemos nos ater um fator simples. Juízes são humanos. Seres humanos erram. Se estes homens e mulheres que foram colocados para fazer cumprir as leis dentro da comunidade cometerem um ato considerado em desacordo com sua posição, a sociedade deve manifestar sua insatisfação. Mas isto não se resolverá com uma solitária reunião em frente a um cinema ou colunas para encher as páginas de publicação impressas ou virtuais da semana. É um processo contínuo. Se você realmente acredita no que defende, precisa ter isso em mente. Só assim sua ideia será ouvida e não largada em meio a todos os gritos do dia. Se você se queixa durante a semana que o filme foi censurado, mas, logo em seguida, está discutindo com igual interesse sobre a última indiscrição de uma celebridade, tem algo errado.
A democracia em nosso país é um bem pelo qual pessoas morreram. Não é melodrama da novela, é verdade. Há pouco mais de 30 anos, brasileiros lutaram de todas as formas possíveis para garantir os direitos que usufruímos agora. Alguns partiram para o exílio, outros desta para melhor. Na época, o inimigo tinha uma face. Hoje, especialmente para as gerações que cresceram no luxo de não ter vivido esta época e passado por estas escolhas, o sentido de esforço contínuo parece ter se perdido. Pior: a indiferença com o que acontece ao seu redor, exceto quando lhe afeta diretamente, se torna a regra. É estranho.
O resumo é que não adianta reclamar que a merda fede depois que está feita. O tipo de comportamento exibido nos fóruns de redes sociais e em mesas de bares durante os 5 dias que durou a discussão deve ser uma constante, não a controvérsia da semana. Mais do que isso até: precisa sair do terreno das ideias e começar a gerar ações. Democracia é composto por direitos e deveres. Em iguais proporções.

Links:
http://cinema.cineclick.uol.com.br/noticia/carregar/titulo/censurado-no-rio-a-serbian-film-e-temporariamente-suspenso-no-resto-do-pais/id/31181/

http://en.wikipedia.org/wiki/A_Serbian_Film

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/951320-veto-a-serbian-film-no-rio-revela-conflito-juridico.shtml

http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2011/07/26/suspenso-pela-justica-do-rio-filme-com-cenas-de-violencia-explicita-vira-hit-na-web-gera-debate-sobre-censura-924981409.asp

http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/2011/07/26/um-filme-degradante-e-uma-falsa-polemica/

http://quadrisonico.wordpress.com/2011/07/29/a-serbian-film-censurado-no-brasil-todo/

http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2011/07/27/andre-miranda-924989187.asp

http://cinema.uol.com.br/ultnot/2011/07/22/bem-dirigido-filme-vetado-no-em-festival-no-rio-de-janeiro-e-calculado-para-causar-polemica.jhtm

http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2011/07/30/arte-democracia-a-censura-a-serbian-film-395352.asp

Série "Idalinas": Boneca de Porcelana



No lugar onde duas jovens cúmplices se sentavam, restaram mudas bonecas de porcelana posicionadas pelo tempo.

Imagem: "Chop Suey" - Edward Hopper
Texto: Daniel Russell Ribas

sábado, 23 de julho de 2011

Crônica de uma morte cantada



"I cheated myself
Like I knew I would
I told you I was trouble
You know that I'm no good"

"You know I'm no good" - Amy Winehouse

Um dos maiores sucessos da cantora Amy Winehouse é "You know I'm no good", cujo refrão que ganhou um conotação macabra hoje. Neste sábado, a jovem considerada uma das grandes revelações musicais da década passada, foi encontrada morta. Como nos casos de outros ícones como Jim Morrison, Jimi Hendrix, Kurt Cobain e Janis Joplin, se trata de uma artista talentosa cuja decadência física/psicológica/espiritual atingiu seu ápice aos 27 anos.
A expectativa por seus shows ou novas canções era quase tão grande quanto qual seria a nova merda que faria. Onde ela cairia bêbada desta vez? Que show ela cancelaria por não estar em condições de subir ao palco? Quando ela entraria na reabilitação pela enésima vez? Nós alimentamos o mito da celebridade autodestrutiva. Chamamos de "atitude". Quando ela cobra seu preço, lamentamos a perda. Ainda assim, aplaudimos enquanto assistíamos ao inevitável.
Lembro-me que de conversar com amigos quando ela fez a controversa apresentação no Rio de Janeiro. Um dos comentários mais comuns era o fato de ela viver um estilo de vida extremo e não esconder de ninguém. Numa hipocrisia disfarçada de elogio, Amy Winehouse era praticamente nosso bode expiatório. Ela não era apenas uma pessoa de talento e carisma. Era alguém que vivia por nós as fantasias da existência de celebridade, aquela que poderia agir sem limites e não ser cobrada por isso.
O mito em torno de Amy Winehouse só tende a solidificar no decorrer dos anos. Não apenas por conta do pontos abordados por acima, mas por uma trivia mórbida: em mais de uma ocasião, ela cantou a própria morte. Além do trecho de "You know I'm no good", podemos encontrar outros exemplos nos hits "Back to black" e "Rehab". Numa, ela canta sobre morrer cem vezes e de ser uma pequena moeda rolando dentro de um cano que seria a vida. E, claro, o famoso refrão de "Rehab". Posso ser acusado de tirar as palavras do contexto, mas não acho que seja o caso. Ela cantou e viveu o desespero de uma existência com prazo de validade estipulado. Cantamos de volta, acendendo e balançando celulares.
Alguns podem argumentar que ela se matou. Outros que nós a matamos, ao incentivar a figura pública no lugar da artista. Nunca é tão simples. Há mais fatores que jamais saberemos. Entretanto, não deixa de me espantar a expectativa que havia em torno de sua morte. Acredito que todos podemos nos lembrar de uma conversa ou manchete em que a decadência de seu estado de saúde era motivo de comentários no sentido "até quando vai durar?"
Quando comecei a procurar informações a respeito do ocorrido, esbarrei no site com sugestivo nome de "When will Amy Winehouse die". Nele, os internautas apostavam quando ela bateria as botas. É provavelmente uma das iniciativas de maior mau gosto e condenáveis que tomei conhecimento recentemente. Porque a questão não é quando a drogada famosa vai finalmente se foder, mas quando uma jovem irá morrer/se matar. É assustador perceber que havia uma expectativa maior pela morte que pela recuperação. Mesmo seus fãs não acreditavam que isso fosse possível. Por que ela morreu? Duvido que alguém saiba ao final. O fato é que a novela acabou. Por que não estamos satisfeitos?
Há pouco menos de 20 anos, Kurt Cobain, um artista com estilo de vida e angst existencial similares, se suicidou. Jim Morrison, mesma coisa, duas décadas antes do vocalista do Nirvana. Agora, Amy Winehouse. A diferença está no estilo musical de cada um. O fato é que, num período de tempo aproximado, surgirá alguém que será sacrificado em nome de algo que não é arte. Alguém que será a manifestação carnal de nossas angústias e aspirações. E, por isso, terá um final breve.
Não a conheci, sequer estive presente durante sua performance na minha cidade. Não me lamento por nenhum dos dois. Acho simplesmente triste, porque desperdício me irrita. Por mais que não seja um fã, ela tinha uma voz e coisas a dizer. Suas letras são simples, diretas e honestas. Sua presença era forte mesmo em imagens gravadas. Poderia ter seguido uma carreira como dos grandes nomes de R&B e soul. Morre a diva, fica a lenda.
Não digo que o público matou Amy Winehouse. Apenas que não a ajudou.