sábado, 5 de novembro de 2011

Crime e pães



Texto escrito para o evento "Clube da Leitura" no sebo Baratos da Ribeiro, em Copacabana. Visite o blog do "Clube da Leitura". É só clicar no nome.

Era uma fria, fria noite de outubro e o operário de fábrica Fyodor Kapek voltava para casa exausto. Havia esperado por mais de uma hora na fila para conseguir dois pães mofados e duas batatas. A rua Arbat estava sem luz devido a outra queda de energia e a neve castigava seus calcanhares e rosto.O ano era 1983 e o local, Moscou, a capital da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A vida não estava sendo fácil para a outrora próspera potência mundial. Problemas sérios de infra-estrutura, desde a produção de alimentos ao declínio da indústria estatal, combinados com a crescente rebelião de grupos insurgentes, levavam o país ao colapso.
Não que Fyodor se importasse com isso. Tudo o que ele queria era publicar seus diários e se tornar um escritor famoso. Queria honrar a memória de seu pai, Nikita, que carregava consigo o livro de sua vida. Por alguma razão, o conteúdo da obra de seu progenitor estava em branco, mas Fyodor não via isso como sinal de fracasso, mas sim de uma abjeção completa pela arte. Seu pai nunca poderia ser um autor de uma história perfeita quando sua vida estava longe disso. Embora o filho não fosse tão radical, reconhecia que a rotina tinha seu próprios meios para sugar a vontade criativa.
No caso de Fyodor, isso se manifestava na forma de sua esposa, Whadia Ingratovich. Eles se casaram por amor, mas ficaram juntos para manter o apartamento luxuoso de duas salas médias e um quarto pequeno. Todas as noites, ele abria a garrafa de vodka com estramônio e permanecia horas em cima de seu caderno. Pela manhã, via o resultado de seus esforços em desenhos de genitálias e numa caricatura de Whadia morta em diversas maneiras. Ainda assim, mantinha a esperança de um dia escrever alguma coisa.
Nesta noite, a vida de Fyodor tomaria um novo rumo.
Após chegar em casa, cumprimentou a esposa. Whadia assistia a um show de variedades na televisão, "Revolucionário dia de trabalho do camarada Fausto", e respondeu mostrando o dedo do meio. Fyodor exibiu, triunfante, as compras.
- Só isso?
- Minha cerejeira, o rublo tá pela hora da morte! Do jeito que essa economia anda, só com uma reconstrução!
- Você sabe o que o Anatoli Nosecu traz para a casa, para aquela "dama do cachorrinho" que é a mulher dele? Quatro pães novos, incluindo um brioche, que nem existe ainda neste sistema planificado e nacionalista.
- Mas ele é um burocrata!
- Eu quero um brioche até amanhã ou a coisa vai ficar realmente vermelha pra você, camarada.
Pensou, mas não encontrou alternativas. Seu tio ganhava um bom dinheiro se prostituindo vestido de mulher, o que gerou o apelido jocoso "Tio Vanya". Será que seria este o seu fim, levar mais ainda atrás da cortina de ferro? Imaginou a si mesmo fantasiado de Anna Karenina quando lembrou do ponto dos travestis, a praça com o monumento a Boris Grushenko. Sabia que Anatoli passava por lá na volta do trabalho. Era um ponto deserto e as bonecas russas não poderiam dizer nada... Foi quando a virtude sumiu da alma de Fyodor. Ainda refletia sobre a moralidade do assassinato quando percebeu que apertava com força o pescoço de alguém.
O corpo caiu rápido na neve. Fyodor tinha acabado de tirar uma vida humana com suas mãos. Sua culpa exalava de seu interior e o sofrimento daquele ser viria a ser acumulado em si mesmo. Notou os belos pensamentos e concluiu: "Por Lênin, eu preciso escrever isso antes que me esqueça." Foi na busca desesperada por uma caneta que terminou preso. Sua mania de falar enquanto escrevia causou sua queda. Em particular, o trecho: "Acabei de matar Anatoli por um símbolo da cultura capitalista em formato de massa."
Condenado por homicídio e pelo brioche, esperava a data de sua execução em um frenesi literário. Ninguém o visitou, mas Fyodor não se importava. Finalmente, era senhor de seu destino. A morte daquele homem o desprendeu de seus pudores, libertando sua veia criativa. Escreveu suas memórias do subsolo, duas narrativas fantásticas sobre um jogador e o idiota, humilhados e ofendidos em noites brancas que encontram seus respectivos crime e castigo através de três irmãos e seu crocodilo.
Era o dia de seu fuzilamento. Apenas uma frase o separava do fim de sua obra. Aí, olhou para um estranho em sua cela. Surpreso, perguntou quem era. O visitante respondeu que era o diabo. Fyodor se assustou, mas o demônio o tranquilizou, informando que sempre gostava de conhecer novos inquilinos antes de mudarem para seu espaço. Como cortesia pela preferência, concedeu um desejo a Fyodor. "Quero a frase ideal para terminar este livro!" O diabo aceitou e disse que, no momento certo, antes de morrer, a frase perfeita, aquela com que seu pai sonhara para iniciar seu livro, surgiria. Antes de o diabo partir, perguntou como era o inferno. "É como estar de volta a União Soviética. E leve um saco de vômito que a viagem é horrível" e sumiu numa nuvem de enxofre.
Fyodor estava encostado no muro. Em suas mãos, uma caneta e um papel, seu último pedido. O pelotão estava posicionado. O comandante contava os segundos. A frase não surgia. "Vamos lá!", pedia o condenado. "Preparar", ordenou o militar. "Cadê a frase?", se desesperava Fyodor. Quando veio a ordem para "apontar", finalmente, a recompensa apareceu em sua mente: "Se o cara nasce mané, cresce mané, morre mané, mané!"
"Dá pra esperar só um minutin..."
"Fogo!"
Fyodor morreu instantaneamente, sem tempo de ver sua obra incompleta ser aproveitada como comida para porcos.

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