sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Valeu, Vicente: um relato pessoal do evento "Homenagem ao querido Vicente"


Ontem eu fui ao Empório.
Para aqueles que eventualmente desconheçam a Zona Sul carioca, trata-se de um bar em Ipanema. Reduto notório de jovens, turistas e criaturas da noite, é conhecido pelo som (rock n'roll) e como porto seguro para os boêmios de plantão (eu). Entre as diversas figuras que estiveram ou ainda surgem por lá, uma resumia em si toda a essência do local. Vicente. Por 22 anos, ele trabalhou como garçom do Empório e se tornou um "embaixador" do lugar. Ele era o Empório em qualidades e defeitos (Quem nunca recebeu seus "avisos" de que não pode entrar com lata de cerveja no estabelecimento ou que é proibido fumar dentro do bar?). Ele morreu na terça-feira, dia 09 de agosto de 2011. Dois dias depois, foi organizada uma homenagem a ele na sua "casa".
Uma amiga, Tábata, teve a ideia e a colocou na rede social. O que, nas palavras dela, seria um encontro entre poucos amigos se transformou numa convocação informal. Chegou a ponto de ela dar uma entrevista para "O Globo" e de receber reclamações de moradores, temendo a movimentação prometida. Deviam ter pensando ser uma espécie de versão carioca para as manifestações londrinas e chilenas, especulo. Pouco mais de 2.500 pessoas confirmaram presença. Duvido que vieram todos. Mas estava bem cheio. Dentro e fora do Empório e estendendo até o bar na outra ponta do quarteirão, o que tinha era gente vinda para a "Homenagem ao querido Vicente". Estacionados na esquina próxima ao bar, a Guarda Municipal tomou posição para acertar a passagem dos carros na rua lotada por pessoas que iam e vinham, cerveja numa mão e cigarro na outra.



Para uma ocasião marcada por uma égide trágica, foi bem descontraído. Lembrava o Empório como ficou marcado em nós: cheio, boa música e amigos aparecendo a cada instante. Era mais o Empório que gostamos de recordar do que aquele que realmente foi. Comentando com Tábata hoje, concordamos que Vicente teria aprovado. Até os reconhecidos pontos negativos estiveram presentes, como a quase total incapacidade de se mover dentro do lugar, a fila do banheiro e o preço do chopp. No entanto, me dando ao direito de ser piegas, senti falta do famoso grito de "Olha o chope!" sempre que Vicente saia do balcão para servir uma mesa. Foi aí que me bateu a certeza de que, como mencionou Bob Dylan numa canção, "Things have changed".
Conversando com alguns dos vários conhecidos em que esbarrei nesta noite, chegamos a conclusão de que o Empório tem duas fases na sua vida: aquela em que as pessoas vão para o Empório e a posterior, em que você aparece no lugar. Explico: a primeira é quando a ida ao estabelecimento é programada. Você combina com os amigos de se encontrar no Empório e a noite gira a partir daí. A segunda é quando, após os bares de rua fecharem, a busca por alternativas de lugares abertos termina por levar ao Empório. Quando você chega a esta fase, é porque não é mais adolescente. Quando começamos a ir ao bar, estávamos entrando na faculdade e não tínhamos maior preocupação do que o CR. Agora voltamos como seres lutando por um quinhão no latifúndio conhecido como mercado de trabalho, com contas e responsabilidades a galope. Definitivamente, não sou o garoto de 20 anos de 2003, ano que marca minha associação com o lugar.
Apesar de, nos últimos anos, somente aparecer de forma ocasional, ainda gosto de lá. Entre porres, tocos e infinitas saideiras, o Empório me parecia um porto seguro justamente por sua atmosfera familiar. E atribuo a isso à presença do Vicente. Até no visual, ele parecia ser o único de nós não afetado pelo tempo. Mantinha a mesma barba generosa e atitude. Gostava de programas culturais e música rock. Sei do primeiro por relatos e experiência. Toda vez que o via, conversávamos sobre filmes, ainda mais depois que me tornei crítico de cinema. Em seguida, pegava com ele um chopp e ia fumar no lado de fora. Quanto ao segundo, há uma gravação no Youtube de um show do Gogol Bordello, em que Eugene Hütz faz um cover de "I wanna be your dog" do Iggy Pop. A participação de Vicente é pequena, porém emblemática.
Como ícone de um passado recente, o falecimento de Vicente deixa uma sensação amarga. Se não para o mundo, sua morte, para mim, separa de forma explícita quem eu fui e o que sou agora. As coisas mudaram. Faço, então, minha despedida usual, quando deixava o copo vazio no balcão e encerrava o dia.
"Valeu, Vicente."

Links:
Eugene Hütz canta "I wanna be your dog"

Morre Vicente, garçom-ícone da cena alternativa carioca, e frequentadores programam homenagem

Foto do evento "Homenagem ao querido Vicente" tirada por... mim.

12 comentários:

  1. ótimo texto Ribas!!Faz uma década em que não piso no Empório mas o Vicente era e será sempre uma figura emblemática das noites da Maria quitéria!tristeza...

    ResponderExcluir
  2. Nossa, muito bom, Daniel. Muito bom mesmo. Fiquei até emocionada. Sem nunca nem ter conhecido o Vicente.

    ResponderExcluir
  3. Meu querido,
    temos contas e responsabilidades a galope... mas este tipo de acontecimento como você mesmo nos faz parar e perceber "quem eu fui e o que sou agora". E sempre há tempo para mudar se a construção for algo que não nos agrada.

    Escrevi algo sobre Angústia e Morte, (http://fuiobrigada.wordpress.com/2011/07/17/angustia-e-morte/) e gostaria de repetir o que escrevi por lá: sempre existe a possibilidade de reconstruir e caminhar aprendendo o que somos. Inteiros e com luz própria.

    ResponderExcluir
  4. Querido Vicente... saudades!!! Bela lembranca Ribas, vai ficar pra sempre em nossa memoria.

    um abraco

    ResponderExcluir
  5. Excelente, Dani.A homenagem ao Vicente, a importância do Empório na passagem do tempo , o rconhecimento do seu amadurecimento...Tudo mesclado e com um ar saudosista positivo, reconfortante , apesar das contas a pagar...Muito bom...

    PS Fiquei pensando quem era o Vicente essa semana depois de ter ouvido tanto sobre ele. Que mundo estranho em que vivemos : o anonimato se transforma em fama com a morte, mas só porque foi absorvido pela mídia....Tão diferente do João Gostoso de Manuel Bandeira ou a Macabéa de Clarice....Tô velha....Realmente.... Bjo, D Fátima

    ResponderExcluir
  6. Aeeeee Ribas!!! Feliz por seu blog e, bem, eu conhecia o Vicente por nome e tenho vários amigos que também foram ao velório e tudo mais. Mais um personagem acrescentado ao nosso folclore urbano!

    Sucesso e estamos aí!!!!! :-)

    ResponderExcluir
  7. Comovente, Ribas, belo texto... eu, que tão poucas vezes fui lá, me enchi de saudade e nostalgia!

    ResponderExcluir
  8. A única troca minha com o Vicente foi um olhar não muito amistoso dele vindo na minha direção. Passo a conhecê-lo melhor por esse seu texto, tão rico. Grande abraço.

    ResponderExcluir
  9. Existem vários Vicentes pelo mundo da boêmia. Infelizmente, nunca consigo conhecer essas pessoas tao bem.. Pessoas ricas em sabedoria!
    Bjs, Monique Jean...

    ResponderExcluir
  10. Créditos ao Jimmy McManis pela arte Keep On Rockin´.

    ResponderExcluir