Cidadão de bem
Não sei o que estou
fazendo aqui. No duro. Não mesmo. Alguém me responde? Não sou vagabundo. Sou
empresário, formado em Direito, pós nos Estados Unidos, pago meus impostos e
pai de família. Tenho mulher e filhos. Enriqueci com meu esforço e esperteza.
Nunca fui um desses acomodados, que deita na grana da família e faz porra
nenhuma. Ou desses vândalos criados sem orientação, que sai pras ruas pra
vandalizar, quebrar agência bancária, aterrorizar a cidadãos de bem como nós.
Meu filho tem uns amigos assim na faculdade; ele me contou. Na minha casa, não
entram.
Esses são o perigo. São
eles que levam este país para o buraco, a devassidão, o comunismo. Eu sou
apenas um executivo que tem um emprego estressante. Centenas de pessoas
dependem de mim, dentro e fora da empresa. Sou uma das peças que movimentam a
economia deste estado. Sabe onde muitos estariam se não fosse por mim? Desempregados,
na rua, na desgraça, na pouca vergonha. É fácil me estampar minha foto no
jornal e me chamar de demônio. Quero ver aguentar a pressão. E não de dia, não.
É de hora em hora. Porque, sem mim, uma parcela do que permite este estado
funcionar vai pro ralo. Ou seja, sem mim, você não recebe sequer seu salário.
Sou como qualquer outro
empresário responsável por uma fundação com centenas de empregados. Para
relaxar, tenho hobbys. Putas, droga, isto é o básico. Todo mundo faz, não tem
problema, não machuca ninguém. Até, inclusive, beneficia, pois pago por
serviços e movimento moeda, além de dar dinheiro para pessoas que estão
trabalhando. Pode-se até questionar a moralidade de seus trabalhos, mas, cá
entre nós, é uma baita hipocrisia. Se a mulher quer dar a boceta ou o cu, o
problema é dela. Quanto a financiar o tráfico, não vejo nada demais. Enquanto
houver traficante, haverá menos ladrões, porque eles se empregam por lá, e quem
sai da linha, é feito de exemplo. Como na minha empresa. Fez merda? Fora!
Mas não é só de gozar e
cheirar que um homem na minha posição pode recarregar a energia. A razão por
que fazemos parte de 1% privilegiado é que gostamos de desafios. A adrenalina é
o que nos torna capazes de tomar decisões duras a cada segundo. Tive vários
hobbys. Quando era jovem, costumava sair com uns amigos da faculdade e íamos
atrás de mendigos. Não para bater, esclareço. Mas, às vezes, ficavam agressivos
e sabe como é que é?, tínhamos que nos defender. Muitas vezes, nos atacavam com
querosene e, no meio da confusão, botavam fogo neles mesmos. Vê só que loucura?
Depois que casei e a
mulher engravidou, percebi que não podia continuar nestas molecagens. É como
meu pai dizia: ter uma criança é a melhor desculpa para parar de agir como uma.
Então, sosseguei. Voltei-me para os esportes. Em especial, squash. Jogava com
conhecidos do clube. Como o sujeito competitivo que sou, fazia de tudo para marcar
mais pontos. Desenvolvi uma técnica, que consistia em bater com o máximo de
força o adversário contra a parede. O braço incha, sabe?, então, desequilibra o
outro, que perde em mobilidade e agilidade. Fiquei bom nisso. Uma vez, o braço
do outro parecia uma beterraba ao fim. Finalmente, um dia, veio este sujeito
tomar satisfação. Não gostei do tom e acertei a cara dele com a raquete. Ele
reagiu, meus seguranças interferiram, uma confusão dos diabos. Enfim, cansei e
resolvi para partir para outra.
Em um almoço de
negócios, um conhecido meu me contou de caçadas privadas. Um grupo importava
animais e os soltava na mata para serem caçados por empresários ou quem pudesse
pagar para participar. Me interessei, comprei um rifle XLF-9, uma beleza de
arma, e paguei minha inscrição. Chegamos lá no dia anterior, tomamos café na
manhã seguinte, vimos nosso alvo e fomos à caçada. Foi muito bom, vou te
contar. A sensação de alerta, de espreitar, sentir o cheiro e a aproximação do
alvo, era uma adrenalina só. E era bom. Além de encontrar, muitas vezes eu era
o que matava a caça. Voltei várias vezes. O problema é que era muito
esporádico. É difícil encontrar alvo com o físico e o treinamento para
sobreviver uma caçada. Não é como bater em bêbado. Se fosse, qual seria a graça?
Então, eram animais que precisam estar em tal condição que estivessem aptos a
correr, até se defender. Geralmente, ex-soldados que o grupo recrutava e
soltava na mata para irmos atrás...
Como? Não, não, não
caçávamos os soldados. Imagine. Isto seria assassinato. Não sou um assassino.
Sou um cidadão de bem, e esta insinuação me ofende. E, olha, mesmo que os
animais fossem gente de carne e osso, que caçássemos seres humanos, eles
assinaram um contrato, e as famílias recebiam 10% do total, uma soma muito generosa.
Mas não afirmo isso, apenas suponho.
Finalmente, precisei me
afastar. A empresa passou por uma crise há alguns anos, alguém fez merda na
Europa, as ações caíram, precisei vender umas subsidiárias, um inferno. Quando
me restabeleci, descobri que o grupo que organizava as caçadas foi preso.
Aparentemente, faziam parte de uma milícia, um desses esquadrões de extermínio.
Então, acabaram as caçadas.
Nesse meio tempo, tive
um enfarte. Fiquei internado, quase morri. O médico mandou eu maneirar um
pouco, disse que escapei por pouco, etc. Fique feliz de não ter tido um AVC e
não ter ficado babando no canto da boca como um amigo meu. Triste.
Sempre tive paixão por
carros e corrida. Quando morei em São Paulo, até frequentei uma pista. Comprei
um carrão,
com parachoques salientes, o reforço especial duplo de aço cromado, veículo
sensacional. Então, resolvi adotar um hobby mais calmo: dirigir à noite. Assim,
chego em casa, janto, pego meu carro e dirijo. Num dia mais estressante, dirijo
por mais tempo, sem pressa pra voltar. Ás vezes, me esqueço tanto do tempo, e
gosto tanto de ouvir o ronco do motor que acelero. Nunca dirigi bêbado ou
passei do limite de velocidade. Como disse, sou um cidadão de bem.
Hoje, por exemplo, estava tenso. Amanhã será um dia
tenso na firma. Me distrai na direção e atingi aquela senhora. Sinto mal que
tenha perdido as pernas, mas não foi minha culpa. Quanto aos outros
atropelamentos que ocorrem nesta região, nada sei. O modelo do carro de cujas
fotos me mostraram é parecido com o meu, sim. Mas não é, eu garanto. Além do
mais, se eu saísse à noite para atropelar pedestres, não seria descoberto.
Tenho pós nos Estados Unidos, sou empresário de uma firma responsável por
centenas de pessoas. E, mais importante, sou um cidadão de bem. Logo, quanto
vocês querem para me liberar aqui e a gente evitar a encheção de saco de um
processo que não dará em nada? Mas falem logo, que amanhã terei um dia terrível
na companhia.
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